Na 6ª reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Rio Melchior, realizada pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, um momento emblemático marcou os debates sobre a crise ambiental que afeta uma das mais importantes bacias hidrográficas do DF. A participação do presidente da Tropical Water Research Alliance (TWRA), professor José Francisco Gonçalves Júnior, trouxe à tona não apenas dados científicos alarmantes, mas também uma denúncia contundente: a tentativa de silenciar vozes da ciência que ousam denunciar a degradação dos corpos hídricos da capital.
O professor José Francisco Júnior — também docente da Universidade de Brasília e coordenador do grupo de pesquisa AquaRiparia/CNPq — compartilhou os resultados de uma pesquisa minuciosa sobre a qualidade da água do Rio Melchior. Os dados apresentados revelam que o enquadramento atual do rio como Classe 4, segundo a Resolução CONAMA nº 357/2005, é uma “licença para a poluição”.
“É uma grande prova de que a Classe 4 é uma autorização legal para degradar. O índice está compatível com os parâmetros? Está. Mas é justamente isso que mostra a falência desse modelo. É preciso rever com urgência os critérios de enquadramento”, afirmou o professor, com base em análises de compostos químicos e tóxicos encontrados na água, como metais pesados, glifosato e AMPA
Durante sua fala, o pesquisador denunciou publicamente — pela primeira vez — a pressão institucional que vem sofrendo por parte da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) via interpelações à reitoria da UnB. Essas interpelações foram após entrevistas suas sobre a mortandade de peixes no Lago Paranoá, um modus operandi que, em suas palavras, configura uma “ameaça velada a todos que ousam discordar da narrativa oficial”.
A denúncia acendeu o alerta entre os presentes. “A estrutura administrativa do DF ameaça todos aqueles que têm uma voz dissonante ao discurso dos órgãos de estado”, declarou, sob forte apoio da bancada e da comunidade acadêmica presente. O que está em jogo vai muito além de um rio poluído. O episódio exposto na CPI revela um cenário preocupante, no qual a atuação crítica e fundamentada de cientistas pode ser interpretada como afronta ao poder institucional. A tentativa de intimidação relatada pelo presidente da TWRA precisa ser compreendida como um alerta sobre os limites da liberdade acadêmica e a fragilidade das pontes entre ciência e gestão pública ambiental.
Apesar das pressões, a reunião da CPI foi marcada por manifestações de respeito, gratidão e admiração aos cientistas que, mesmo diante de ameaças, seguem atuando em prol do interesse público.
A apresentação do professor integrou um painel que reuniu outros dois renomados cientistas da UnB: os professores José Vicente Bernard falando sobre a contaminação de mercúrio e Ricardo Minotti apresentando as dificuldade para a gestão de recursos hídricos. Juntos, os três acadêmicos reforçaram o papel imprescindível da ciência e dos cientistas na proteção dos bens comuns — como a água. Seus trabalhos demonstram o quanto os ecossistemas aquáticos da região do DF estão fragilizados por décadas de descaso, despejo irregular de esgoto e ocupações desordenadas.
O Rio Melchior: um corpo hídrico esquecido
O Rio Melchior tem importância estratégica para o Distrito Federal. Ele integra a Bacia do Paranaíba, alimentando áreas urbanas e periurbanas do DF e refletindo diretamente as consequências do crescimento desordenado, da ausência de saneamento em algumas regiões e da baixa fiscalização ambiental. Por ser um dos rios mais impactados da capital, sua situação é sintomática do que ocorre em muitas outras microbacias brasileiras.
A classificação do rio como Classe 4 — a mais permissiva — representa, na prática, a aceitação oficial de que ele pode receber poluição sem expectativa de recuperação. “É uma sentença de morte disfarçada de norma técnica”, disse o professor José Francisco, ao defender um novo modelo de monitoramento, transparente e participativo, que envolva academia, sociedade civil e setor público.
A CPI do Rio Melchior ainda terá desdobramentos importantes, mas já cumpre um papel essencial: dar visibilidade à realidade dos nossos rios, abrir espaço para a escuta qualificada e colocar os holofotes sobre práticas que não podem mais ser toleradas em um contexto de emergência climática e colapso hídrico.
Se há uma lição a ser tirada desta audiência, é que salvar o Rio Melchior não é apenas uma questão ambiental. É, sobretudo, uma decisão política — e moral.